Aposentei a pena para tornar-me aos cigarros. Trago-os com gula, com gana; sôfrego em consumi-los um a um; ansioso em expirá-los e inspirá-los. Cheiram a conforto. Não peço que o leitor compreenda quando nem mesmo este escriba o faz; apenas fumo os cigarros e aceito os fatos. Logo que acordo, acendo o primeiro, sirvo-me de algo que beber, e vejo o movimento matinal das ruas. Penso, e repenso, para pensar novamente. Tão logo chego ao trabalho, sirvo-me de chá ou de café, torno a acender um cigarro e escondo-me de qualquer um que possa me interromper, semelhante a um cão que se alimenta e não permite que alguém se aproxime.
Como não cessam os pensamentos, e demoram a cessar os cigarros, permito-me acender mais dois antes de sair para almoçar. Sempre torcendo para que não me atrapalhem, para que os pensamentos não me escorram pelos dedos, não percam seu encanto. Sou fascinado por esses filmes, essas fotografias, que, tal como o bom cinema, me torturam, me alegram e me entristecem. Nada mais preciso que cigarros, algo que beber e algo que pensar.
No caminho para o almoço, fumo outro cigarro. Este é amargo, sob o calor do sol, quase religioso, automático. Ocorre que me encontro num impasse, sob o jugo de perder ou perder, e me recuso a aceitar. Não há o que possa lhe dizer que vá me alegrar, sobre o que eu possa pensar quando do último cigarro madrugada adentro. Não há perdão, nem sequer justiça; só há um silêncio que se amplia perenemente e que grita dentro da minha mente. São muitos cigarros. Permito-me levar à boca outro no retorno ao trabalho e quantos mais forem necessários até o fim do expediente. Acompanhados de água, de suco, de leite, desacompanhados. Quando me encontro desenfadado, o que não raro o estou, penso em marcar a pele com a brasa do cujo. Conseguiria resistir ao calor? A dor gritaria mais alto que este silêncio?
Tornei-me aos cigarros porque, impossibilitado de perder ou perder e não desejando o desfecho que não planejei, só me resta sentir. Aflorar minhas mágoas, minhas raivas, minhas saudades, meus êxtases. Permitir que transbordem e afundem para exalá-los como fumaça, a máxima lembrança de algo que já não o é mais. Os cigarros me entendem, eles me saciam. Às escondidas, fumo alguns cigarros de noite e guardo a preferência para o derradeiro, ritualístico. Já não há frescor, somente significado. E quando nem os próprios cigarros, ah! meus desejados!, me bastam, torno à escrita.
O segundo semestre de 2013 foi o período
recente da minha vida em que, diante das situações negativas, convergi-as para
um único ponto: um blog.
Não apenas um blog, mas um espaço em que pude expressar
minhas emoções e sentimentos e construir um ambiente de memórias.
Esse período negativo durou quase um ano. Meu
blog, contudo, surgiu meses depois dos piores momentos e vingou além do que eu
esperava.
Narrei sobre um relacionamento rompido, uma
traição de confiança, solidão, raiva, tédio, tristeza, violência e preconceito.
Por outro lado, falei sobre se apaixonar, o valor das pessoas, carinho,
sorrisos e o tempo.
Fiz das pessoas a minha volta personagens de
meus textos, bons ou maus. Amigos, ex-amigos, conhecidos e estranhos. Também criei
personagens da minha cabeça e os tratei como se fossem reais.
Nos dois últimos meses de 2014 cessou-se a
inspiração negativa sobre a qual eu construí o blog. Era o início de uma
mudança de fase.
Em janeiro agora decidi que deveria escrever o
quão importante meus amigos são para mim e, meses depois, completei meu
intento. Juntamente, tomei a decisão de finalizar o blog.
Reler o que escrevi há quase dois anos, hoje,
me traz o choque de se olhar no espelho, e se reconhecer, e não se reconhecer.
Fico muito feliz pelo que escrevi e também constrangido.
Em muito acertei, e acho bonito o que escrevi.
Estava inspirado. Há, contudo, os erros, os quais prefiro não repetir. Devo
superá-los e seguir adiante.
E, por fim, há essa despedida abrupta, tema do
meu último texto. Meu post final seria sobre amizade, sob o nome de TUDO HÁ DE
PASSAR, mas as circunstâncias mudaram.
Minha vida continua a ser minha inspiração para
escrever e, portanto, meu último texto é um completo adeus: ao blog, a uma fase,
e além.
Dois
homens sentaram-se num banco. Caía uma fina chuva sobre a cidade e o sol que
nascia por detrás das nuvens pintava de rosa o céu nublado. Carregavam consigo
malas, pois era uma despedida. Um deles, barbado, carregava dois copos de café
para beberem enquanto esperavam o primeiro trem partir. Não conversavam entre
si.
Como
praxe, o homem barbado acendeu um cigarro. O outro não fazia questão de fumar;
não ali. E passaram-se longos minutos. Era palpável a tensão entre ambos, como
poeira presente no ar. O segundo homem, moreno, continuava a beber seu café de
modo solene. Ignorava a presença do outro e só pegou o café quando o viu sobre
o banco.
—Que horas o trem parte? — perguntou o barbado. Não houve resposta.
Abaixou-se e fuçou a bagagem.
No bolso externo da mala, encontrou a passagem. Na verdade, sabia perfeitamente
o horário da partida, mas o silêncio o angustiava. Ele não irá falar. Era
perceptível em seu olhar, escuro e opaco, a relutância àquele momento. Preferia
ter vindo sozinho, sem dizer adeus. Já bastava, contudo, que fosse uma
despedida abrupta.
Era madrugada e chovia. Não
conseguia dormir e, portanto, foi para a sala fumar. Encontrou um vinho suave
barato, completou uma taça e abriu as grandes janelas do lugar. As cortinas
esvoaçaram. O outro dormia tranquilo no quarto, as malas já prontas. Ele ainda
remoía a conversa do jantar.
—Estou de partida — anunciou enquanto comiam spaguetti e almôndegas
— Amanhã, de manhã.
Não houve resposta. Sentiu-se
humilhado e raivoso. Parou por uns instantes, a cabeça inclinada para frente.
Quando falou, sua voz não era mais do que uma fraca rouquidão.
—Quando você decidiu ir embora?
—Agora — mentiu — Não há mais sentido continuarmos a viver assim,
você sabe.
—Assim, abruptamente?
—Sim.
Quando
deu conta de si, a chuva molhava o piso da sala, carregada pelo vento. Ficou de
frente para a janela, molhando o rosto com os pingos gelados. Tocavam sua pele,
eriçando os pelos como as palavras que havia ouvido. Fechou a janela após
derramar o que restava do vinho por ela. Apagou o cigarro num cinzeiro.
Deitou-se no sofá. E chorou. De raiva. De tristeza. De amargura.
—Acho melhor ir — disse, finalizando o cigarro. O outro assentiu com
a cabeça. — Dê-me um abraço de despedida.
Não houve resposta. Fitou-o
quieto, levantou-se e seguiu seu caminho. Por um instante, pelo canto dos olhos,
vislumbrou um movimento, entretanto, não se deteve e continuou caminhando em
direção a saída. A chuva caía forte e o céu estava rancoroso. Atravessou a
ruela do estacionamento correndo e entrou em seu carro. Estava frio, muito
frio. Acendeu um cigarro e observou-o dali, a poucos metros atrás da enorme
parede de vidro. Continuava intransigente, sentado ereto. Besteira, não havia
se movido. E então reparou em algo sobre o painel. Um papel dobrado.
Segurou-o em sua mão trêmula.
Segurou-o por um longo tempo, fitando-o com seu olhar afiado. Segurou-o em
dúvida. Hesitou. Por fim suspirou. Estava cansado e inclinou a cabeça. Era seu
momento solene, sua despedida, a despedida que o outro lhe havia declinado. Abriu
a janela, amassou o papel e jogou-o fora.
—Adeus.
Ligou o carro e partiu. Não
olhou para o lado nem pelo retrovisor. Longo é o caminho para casa.
Não consigo deixar de
pensar no meu futuro. Sonho e me vejo daqui alguns anos. Moro num lugar frio,
de preferência a Irlanda, e trabalho num jornal local ou numa revista
especializada em games. Em meus sonhos, conheço um irlandês que trabalha
comigo e, nos primeiros momentos, não nos falamos ou nos conhecemos, mas somos
apresentados por uma amiga em comum, também do mesmo jornal. Trocamos
galanteios numa noite de bebedeira e, pouco depois, nos envolvemos.
Moro num apartamento
pequeno, como gosto, e minha cozinha é revestida por tijolos, aqueles de
interiores. É pequena, mas grande o suficiente para uma bancada e banquetas. Minha sala
possui um sofá-cama, tevê e uma mesinha central na qual repousa um cinzeiro, um
maço de cigarros mentolados e um isqueiro. Tudo limpo e, por ser Dublim, úmido,
mas agradável. Acordo todos os dias de manhã em minha cama de casal, lavo meu
rosto coberto por uma barba de estimação e faço um café moído na hora. Como um
pão integral, uma fruta qualquer e uma bolacha natural. Meus cabelos são um
pouco desgrenhados, quase falhos, e uso um óculos redondo preto e alargadores
pequenos e igualmente pretos. Possuo calças sarja: preta, cáqui, cinza com
riscas e azul-escuro. Também, calças jeans. Algumas camisetas. Poucas camisas.
Roupas de frio. E sapatos, os mais variados. Gosto muito de correntes finas de
metal ou prata. Tenho minha corrente preferida com um pingente de âncora. Em
meus pulsos, pulseiras de couro e derivados. Uso perfume adocicado, pois gosto
desse frescor que me traz. Um contraponto ao meu humor às vezes instável. Isso
quer dizer que posso mudar do sorriso para o choro dependendo do que ocorrer no
dia. Costumava mudar mais, mas ter minha independência me amadureceu com o
passar do tempo.
Gosto de pensar que
quando não tomo café em casa, compro um cappuccino ou um café irlandês numa
cafeteria local e vou andando para o trabalho enquanto vejo inúmeras pessoas
passarem por mim, com roupas de frio e sempre ocupadas. De noite, costumo sair
com meus amigos para os bares e pubs da capital. Sempre sonhei em fazer
um circuito de bares, e provei muitos tipos de cerveja diferentes.
Aparentemente perfeito, mas não o é. Tenho em minha sala, sobre uma mesinha,
vários porta-retratos. Juro por tudo que é mais sagrado: nunca tive o hábito de
ter porta-retratos, nem em meu quarto, nem na casa dos meus pais. Eles mesmos
só tinham os mais antigos, de quando éramos eu e minha irmã pequenos. Quando,
porém, me afastei dos meus amigos, não aguentei deixá-los para trás e precisei
carregá-los, em parte, junto comigo. Tenho, no centro, dois porta-retratos da
minha família: meus pais e, ao lado, minha irmã, meu cunhado e seus filhos. Do
lado direito, meus amigos do peito, aqueles do colégio. Um porta-retratos para
cada um deles, numa foto comigo. Temos um último porta-retrato com todos
juntos, e a foto está desgastada de tantas vezes que a tirei dali. Do lado
esquerdo, meus amigos do peito, mas aqueles que conheci depois. Não que sejam
menos importantes, mas fazem parte de tempos diferentes da minha vida. Estão
todos ali, sem exceção, e, também, alguns porta-retratos que unem as variadas
rodas.
É aqui que paro, penso e
me entristeço. Não compreendo um futuro em que eu possa carregá-los comigo para
onde quer eu que eu vá. Sim, posso levá-los em meu coração, em minha mente, mas
não posso tocá-los ou senti-los: somos algo maior dividido em muitos pedaços. É
difícil imaginar um futuro assim, por mais belo que seja. Por mais que eu
encontre alguém, aquilo que chamam de alma gêmea, que me mantenha feliz e
protegido. Ora, as amizades são aquilo que mais tenho de valioso. Para alguém
que passou anos de sua vida enclausurado numa pequena jaula, foram meus amigos
que me mostraram o mundo, e foram eles que me ajudaram a pintar o quadro da
minha vida, mesmo que não por completo. Sonho que são bem-sucedidos; uma é
escritora famosa, a outra é diretora de cinema, temos um bom administrador,
bons jornalistas, uma cientista e outras belas profissões. Conheceram seus pares.
Alguns se casaram, outros não tenho certeza se o desejam. Mas moramos em
lugares diferentes, temos objetivos diferentes, vidas diferentes. É difícil
aceitar e abrir mão daquilo que mais nos vale. É difícil aceitar perder aquilo
que mais importa. Quem sou eu, porém, para chamar a amizade infinita, se somos
nós finitos? Toda amizade perdura, mas também definha. Tudo tem um prazo de
validade, seja a distância ou a morte. Saber que em um momento da vida, é
natural que a distância cresça, mesmo que o carinho também, é aceitar um fardo
que hoje me entristece o coração sobremaneira.
E como remédio me afogo
nas canções de George Harrison e meu álbum favorito “All things must pass”.
Sim, o nome não é pura coincidência. Em sua canção homônima, ele canta sobre as
belezas e os dissabores e como tudo há de passar. O dia finda em noite; a vida,
em morte; a amizade, em lembrança; a beleza, em sabedoria. Não muda o fato do
ciclo da vida, mas me ajuda a entender que não sou o único que se questiona
sobre. E, é claro, tenho um grande problema: acredito que muitas coisas que
ocorrem a mim, ou acontecem comigo, não acontecem com outros. Me acalma saber
que, nesses momentos, não estou só. Senti-me só por muito tempo e, em demasia,
me corroeu e me abalou. Por isso, não me sinto bem ao pensar que, no futuro,
estarei longe daqueles a quem jurei, internamente, eterna lealdade. Sinto-me
só. Sinto-me feliz, mas também incompleto. Sinto que deveria recolhê-los, um a
um, em suas casas e guardá-los comigo, mas não posso. Sei que, enquanto fumava
meus cigarros, costumávamos estar juntos. Hoje, os fumo em casa, enquanto meu
parceiro dorme. Sinto que os tenho, mas tudo passa. Tudo há de passar. E volto
à realidade, às aulas, aos encontros de fins de semanas e às festas. Não
consigo deixar de pensar num enorme relógio que demarca as horas que ainda
terei com todos, mas não posso me ater a esse futuro agora. Meus amigos me permitem ser quem eu sou, e ser
quem eu sou me permite aproveitá-los, amá-los, e carregá-los comigo, perto ou
longe, até o fim.
Perdi alguém; um entre milhões. Por que, meu Deus? Não sei, não sei! Por que, meu Deus? Não sei, não
sei! Perdi alguém; um entre milhões. Ele caminha pelas ruas junto das
pessoas; todos sem rostos, todos indistinguíveis, todos fugitivos. Fogem de
quê? Não sei, não sei! Mas... eu
perdi alguém; eu sei, eu sei! Em meus
parcos momentos de lucidez, nos parcos momentos de sanidade, respiro profundo (sem ar, sem ar!) com meus pulmões
perfurados. Arranho minhas costas, balanço nervoso; rolo no chão, e pisco sem
parar. Choro compulsivamente... e fumo cigarros; muitos cigarros! Bebo sem ter
fim (a vida é um bar!); histórias cruzadas que não hão de terminar (bem).
Não há esperança? Não se esqueça de acreditar! Se não há
esperança, não há razão para nada; se não há esperança, não vale a luta. Dobro
o número de cigarros, de doses e doses de bebidas amargas; fujo da realidade.
Não me permito viver acordado. Por que,
meu Deus? Não sei, não sei! Perdi alguém; um entre milhões. Escapou-me
pelos dedos; escorreu-me pelas roupas, evaporou-se pelos ares. Por que, meu Deus? Não sei, não sei!
Como se todo ar fosse expirado de ti, de supetão. Como um
tiro, em que o calor, pouco a pouco, se esvai. E tudo se faz silêncio. As
últimas palpitações são as mais fortes, as que exalam mais sangue – quente,
vermelho... vivo. A lágrima que escorre seca e se perde entre o ar. A faca que
corta profundo, e toca nos ossos. Lentamente rasga, de cabo a rabo, até
finalizar seu trabalho, permitindo que a agonia tome conta da minha
consciência. Em minhas mãos, um cigarro, o último amigo, dizem. Uma taça de
vinho e meus olhos que, com o tempo, se tornaram opacos. E o ardor que outrora
transpareceu findou-se. Para sempre?,
me pergunta Giulia. Não sei, não sei!
Há
uma luz que jamais finda; destas que nos guiam nos momentos de escuridão — um
portal para atravessarmos as adversidades e emergirmos na luz. Sim, como um
lampião ou um farolete, uma chance entre as tentativas; uma oportunidade
durante a vida. E há este seu sorriso, que se deita como um remédio, e banha
meus dias com um humor que há muito já não o recordava. Há sua presença — esta
da qual não desejo me apartar, pois me faz um bem danado. Há nós, e somente
nós. E quando repousamos, sob as frias e escuras noites de inverno, e a chuva
corre sem jamais cessar, é sua luz que brilha acima das estrelas. E sei que
posso esperá-la sempre, pois lá sempre estará.
Costumava
acender um cigarro e, em solidão, deixar que o tempo fluísse e se perdesse nas
incontáveis horas que perduram. Observava o mundo, da janela do apartamento,
como um borrão inumano e sem significado. Respirava, mas não aspirava a vida.
Há uma luz que jamais finda e nunca esquece. Posso ter me perdido, esquecido,
entre as ruas secas e sórdidas de onde moro, mas Ela não me esqueceu. E
encontrei você, de supetão, soturno e quieto; quem diria. Hoje, fumo quieto,
beberico algo e penso em ti. Penso em tudo o que isso significa e onde quero
ir. Tenho receio, mas teu sorriso me derrete. Sigo em frente. Sim,
há uma luz que jamais finda, nunca esquece e, cada vez mais, brilha. Pode estar
coberta, ou posso estar cego, mas existe. E são entre os cigarros, as bebidas,
a respiração e esses sorrisos que ela alumia, cresce e brilha. Meus dias não
hão de ser augustinos, nem otavianos; isso passou, pois tudo passa. Hão de ser
carlíneos. E em frente.
Nasci com uma marca, um estigma. Carma. Sem desejo de o
sê-lo, estigmado, mas desde sempre sob sua sombra, assim vivo os meus dias, que
correm sem jamais cessar. Os estigmatizados fumam, bebem e se perdem entre as
sinuosas curvas da estrada da vida; caminho de pés descalços sob o furor do sol
na estrada-para-lugar-nenhum e o meu destino é o puro e simples fim. O fim das
coisas.
Que engraçado, ou não. Alguns nascem marcados, como
animais de rebanho, com um mau carma. Vivem, ou sobrevivem, dia a dia, prolongando
e esticando a linha vital, a força primitiva que pulsa em nosso interior, como
um apelo sufocante ante a força irracional e destruidora do fim. A cessão das
coisas, a antimatéria. Costumava (sobre)viver os dias como quem observa das
janelas dos ônibus as pinceladas agressivas de uma pintura expressionista e
pondera ali a raiva contida, o temor sublime, as paixões profundas e toda sorte
de emoção sob as quais estamos sujeitos. Era espectador do teatro da vida, da
história cênica; hoje, retomo as rédeas do eu-lírico e respiro os bastidores
desta grande saga. Tudo me leva ao fim, e não mais sou levado pela mão
invisível do destino. Minha marca, contudo, permanece como um lembrete clássico
de “não se aproxime” e da sujeira que cobre minha carne. De nada adianta que
diferente fosse, pois tudo remete ao fim.
É no cigarro, temporário e solitário, destruidor e, ao
mesmo tempo, paradoxalmente inspirador de vida que os estigmatizados encontram
sua força, seu eu, sua marca não só exterior, mas pincelada tão profunda e
impenetrável que sombreia nosso âmago com seu desenho único e desumano. É o
carma, o carma que assombra, que aflige, que oprime. A marca legal das minha
infrações etéreas e carnais. E a luz da qual sou fonte tem em sua aura negra,
decaída, a beleza que o alvo insiste em esconder, com um terror intrínseco
próprio de sua natureza autoritária. É na bebida, temporária e modificadora,
destruidora e, também, inspiradora da vida, ou melhor, dos pequenos lapsos dos
estigmas, das marcas, dos rótulos e que nos permitem vislumbrar o selvagem em
sua forma mais pura e natural, bárbara, mas consciente. Nela, se perdem as
almas, como num profundo poço da perdição ou nos caldeirões do diabo, que um
dia ousaram vislumbrar a arte, a magia, e tudo o mais que foge à vista dos
incautos carmáticos.
Apenas vendo a destruição, a desconstrução dos átomos é
que nos apercebemos do pulso vital. Conhecendo a morte, entendemos a vida. É na
beleza caída dos anjos rebeldes que se encontra a pureza dos filhos dos deuses.
É no fim da minha estrada, para lugar nenhum, que espero encontrar a resposta
que busco. É o carma. É o estigma. É o rótulo. E, depois, o fim das coisas.